Eu estava esperando a dona do blog, mas “num guento” hahaha…
Recebi esse texto e só o título já é fantástico…
Espero que vocês gostem!
Por Tate em Cotidiana
Gordofobia é um tema prometido faz tempo nessa coluna aqui. o que é? aversão, ódio, fobia e/ou tratamentos depreciativos às pessoas gordas e/ou gordura. almoço muitas vezes no restaurante da unb, no refeitório vegetariano. algumas pessoas que comem lá não são vegetarianas, escolhem o refeitório porque acham que a comida é “mais saudável” ou porque tem menos fila. no ano passado eu tava lá almoçando e, perto de mim, tinha uma mesa com umas 4 pessoas, 1 mulher e uns 3 homens, todxs brancxs. a mulher namora um dos homens. e ele faz um comentário assim: “ia ser bom se comida não fosse gostosa, porque aí não existiriam pessoas gordas no mundo. elas não iam ter mais motivo pra comer tanto e engordar. pensa só, galera, que lindo um mundo sem gente gorda”. as outras pessoas riem. gargalham.
Eu estava bem sentadinha lá, comendo a comida gostosa e barata que acho pouco saudável (por ter agrotóxicos), com meus muitos quilos “a mais”, almoçando no vegetariano porque sou vegetariana, há 10 anos agora, por motivações que começaram com respeito à vida das pessoas não-humanas. só bem recentemente é que comecei a ter mais cuidado com a saúde no plano da alimentação. já fui a rainha da fritura, e ainda gosto muito de açúcar. aliás, só parei de comer fritura quando cansei de lavar as panelas das coxinhas (de lentilha!), das mandiocas fritas, dos quibes de ervilha… muitas pessoas, até hoje, se espantam quando sabem que sou vegetariana. não conseguem entender como uma mulher gorda pode ser vegetariana. associam, ainda, uma dieta vegetariana a uma que chamam de natureba, e os estereótipos atacam novamente!
A magreza tem sido incentivada em nossa sociedade, esse pedaço de mundo pós-colonial, tecnocrata, de capitalismo patriarcal e racista, a partir de motivações que criam e consolidam o mito de que magreza é saúde, e conectam “saúde” a “funcionalidade” dos corpos. recentemente vi num jornal de tv a notícia de que uma mulher que concorria a uma vaga de emprego foi dispensada por ser obesa. é importante lembrarmos que também é um traço construído, nessa sociedade (e constitutivo da mesma), colar “saúde” com “funcionalidade”; e ambas serem a medida de quem vai servir pra ocupar postos no mercado de trabalho, por exemplo. os exames de saúde admissionais ilustram isso, podendo advertir ao patrão sobre a capacidade de eficiência da pessoa a ser contratada a partir da possibilidade de exploração de sua mão-de-obra, pra que ele não só deixe de arcar com custos de lesões e traumas causados pelo esforço, mas que possa eliminar pessoas mais propensas a “menos eficiência e funcionalidade”.
Mesmo corpos gordos sendo “funcionais” pra esse uso exploratório e pra outros usos (próprios), ainda assim há todo um aparato midiático, a serviço de outras indústrias, que vai criar uma expectativa de magreza social. que indústrias outras? especialmente a farmacêutica e a de cosméticos. porque outra associação feita à magreza tem sido a da beleza; beleza sendo equiparada a magreza e vice-versa, justificando o afã das dietas mágicas de “perca 4 quilos em 7 dias”, o alto faturamento das indústrias da cirurgia plástica e das academias, a adoração dos corpos anorexos das passarelas, o boom das cirurgias de redução de estômago… um conjunto de processos de intervenção que tratam gordura como doença, padronizam o modelo estético pros corpos, e criam uma fobia à obesidade.
Obesidade é grave sim, eu também sei. Pode ter implicações no funcionamento interno dos órgãos, além de graves conseqüências psicológicas pras pessoas obesas. mas acho leviano que o que é um sintoma de outros distúrbios (de ordem psíquica, hormonal, afetiva ou mesmo social – “cultura do fast food” nos diz algo sobre isso) seja tratado como a doença em si. Há vários casos de que pessoas que fazem redução de estômago engordam de novo. Ou seja, onde tá o problema? Ou será que vivermos numa sociedade extremamente consumista, de acúmulo, não tem nenhuma relação com a forma como lidamos com a comida? Com as compulsões e distúrbios alimentares?
Anorexia e bulimia são, infelizmente, rotineiras nas vidas de muitas mulheres. uma filósofa feminista, alice gabriel, escreveu uma vez, lá no começo dos anos 2000, um artigo muito interessante sobre a relação entre o imperativo da magreza anoréxica e uma forma de “masculinizar” o corpo. masculinizar no sentido de afastar dele as características atribuídas à feminilidade: curvas, peitos, gordura acumulada nos quadris e nádegas… Anos mais tarde, lendo germaine greer, outra feminista, tive contato de novo com essa assunção, de que o padrão de beleza vigente nesse nosso pedaço de mundo tem tudo a ver com uma ótica de masculinização do mundo. Não significa que elas acham que todas as mulheres tenham que ser gordas pra serem mesmo mulheres, até porque o feminismo já ensinou pra gente que não existe um “ser mulher” único, mas sim várias formas de construção de femininos e masculinos que dependem muito dos interesses envolvidos, dos contextos, dos modos de produção, das economias (como sistemas de relação)…
Mas elas, e outras feministas, estão alertando pras conexões entre expectativas sociais quanto aos corpos e os sistemas políticos a que elas servem, ideologicamente. o impacto disso é sentido na vida de cada uma, tanto naquela que enche o prato de folha pra poder comer uma sobremesa, quanto aquela que vomita o que comeu, e aquela que se olha no espelho se achando sempre gorda ou magra demais, e também daquelas que fiscalizam o peso da outra. Tem também a ver com aqueles que contam “piadas de gordinho”, que ofendem, humilham, xingam, ignoram, destratam e oprimem pessoas que têm corpos considerados fora da norma, com as milhares de revistas de dietas nas bancas (ao lado das milhares de revistas de receitas)…
a gordura e a obesidade são problemas sociais na medida em que impedem ou constrangem a existência de um enorme grupo de pessoas, quando tornam um pesadelo sair de casa quando não se tem uma roupa preta que “te deixa parecer mais magra”, ou no inferno particular que é comprar uma roupa numa loja de departamentos. são problemas sociais quando a sociedade não dá conta de lidar com uma diversidade que é real, em contraste à virtualidade das mulheres e homens de papel, nas capas das revistas, novelas, filmes… os corpos que existem são os corpos que estão aí, nossos corpos e os que circulam perto da gente, ou longe e escondidos porque nosso
olhar é julgador, preconceituoso, nossas palavras são afiadas como navalha: “ah, ela tem o rosto tão bonito… podia emagrecer né?”; “nossa, que vara-pau”.
Tem gente que não consegue querer levantar da cama porque é gorda, e acorda desejando estar saindo de um pesadelo, o pesadelo que seu corpo virou: uma prisão ditada pelos costumes cruéis, hegemônicos e normalizadores de uma sociedade bem doentia e gordofóbica. eu sei que tem porque passei muitos anos acordando assim. E agora, quando acordo e me
olho no espelho me sabendo e sentindo linda, maravilhosa e gostosa, com todas as dobras e gorduras e marcas, escrevo essas palavras esperando que elas possam, de alguma forma, deixar as manhãs de outras mulheres gordas mais felizes. Agora me visto muito mais de vermelho, e branco, muito branco. Pra todo mundo me ver chegando, em todo meu tamanho.
Pra todas as minhas amigas que engordaram mais que gostavam, e isso começa a incomodar (hipertensão e pré-diabetes; ou às vezes atrapalhando na performance sexual). Pras que tão fazendo dieta não porque querem ser capa da vogue, mas pra voltar a caber nas roupas favoritas, parar de sentir dor no joelho, subir escada sem ficar tão cansada, ter muito gás pra dançar… e que começaram a comer de outra forma, com mais
tranqüilidade e entendendo os alimentos como pontes pra saúde integral.