— Eles me chamam de cabelo de bombril, assolam “passou, limpou”, cabeça de esfregão. Disseram para eu ir lavar a louça da casa deles. Eu fugi — contou, a jovem negra de cabelo carapinha.
A moça levou a menina para casa. Foi recebida pela avó, uma senhora de 68 anos, que contou que não era a primeira vez que a neta era ofendida pelos guris e chegava em casa aos prantos. O conselho da vizinha foi que a avó fosse se queixar na escola, já que a neta havia sido vítima de uma humilhação chamada bullying.
O termo em inglês caiu na boca do povo, mas pouca gente sabe o que significa. Ele não se aplica a uma briga ou a troca de palavra atravessadas entre colegas. Porque bullying é um conjunto de comportamentos agressivos e intencionais contra uma pessoa ou grupo, sem motivo evidente, para causar dor ou dano, sem revide eficaz da vítima. A violência, física ou verbal, ocorre repetidas vezes.
— O bullying nasce na intolerância, no preconceito, na exclusão. A criança geralmente é obesa, é negra, é pobre, tem uma religião diferente. E aí que se caracteriza o bullying — afirma a professora Cleo Fante, ex-presidenta do Centro de Estudos do Bullying Escolar, em Brasília (DF) e consultora da ONG Plan Brasil.
Autora de dois livros sobre o tema e considerada autoridade no estudo de bullying no Brasil, Cleo participou, no ano passado, da realização de uma pesquisa nacional realizada em 25 escolas das cinco regiões do país. No levantamento, feito pela Plan Brasil, foram entrevistados 5.168 alunos de 5ª a 8ª séries. Destes, 70% disseram ter testemunhado algum tipo de violência no colégio (física ou verbal) e 20,1% havia sido vítima de bullying pelo menos três vezes em um ano.
É o que ocorria com a jovem da Zona Leste, que ouvia zombaria dos colegas por causa do cabelo muito crespo. Mas, seguindo o conselho da vizinha, a avó da menina resolveu ir à escola intervir pela neta. Ouviu de uma professora da escola pública que, infelizmente, isso era comum. “Que os gordinhos eram chamados de baleia e que a neta também tinha “de aprender a se defender porque o professor não estava em toda parte”. A avó não gostou da resposta:
— Então a gente coloca uma criança na escola para ela ser tratada como um traste e para não ter um adulto para defender? Deu vontade de trazer para casa na hora.
A aposentada pediu que a neta lhe mostrasse quem eram os colegas que a perturbavam e pediu a eles que não a tratassem mal. O apelo pouco funcionou. Semanas depois, a menina voltou para casa chorando outra vez.
— Aí eu decidi tirar da escola, porque ela estava triste demais — diz a idosa.
Nesta reportagem, você vai conhecer outras histórias de sofrimento, mas também aprender a reconhecer, evitar e combater esse comportamento nocivo — que afeta a crianças, jovens e adultos.
A dor de ser vítima
— Quando eu usava óculos, ele me chamava de quatro-olhos. Se eu jogava futebol, me chamava de podre, dava carrinho, canelada… Na 2ª série, levei um soco do nada. No ano passado, apanhei várias vezes — conta o menino de 10 anos.
Olhos e voz baixa, o aluno da 5ª série parece assombrado pelas lembranças do desafeto que o perseguia na escola que estudou até o ano passado. Segundo o pai, seu filho foi humilhado pelo colega por três anos, mas a instituição privada da zona central em que estudavam fez vistas grossas ao maucomportamento. Quando os episódios de agressão física do tal aluno e de seu grupo de amiguinhos violentos começou a se tornar frequente, o pai interveio:
— Falamos com a direção duas vezes, mas vimos que não ia mudar nada. Só tinha uma turma de 4ª série na escola. E se eles iam ficar, meu filho ia sair.
Especialistas determinaram um perfil genérico de vítimas e agressores. Em geral, os valentões são populares no colégio e gostam de colocar apelidos nos demais. As vítimas costumam ter algum grau de ansiedade, baixa autoestima ou insegurança.
Isso não é regra. A inteligência de um aluno pode chatear um grupo. De uma hora para outra, o colega participativo vira “o nerd”. Foi o que aconteceu com um aluno de 12 anos, da 6ª série de uma escola privada da zona norte de Santa Maria. Para evitar o apelido, ele parou de participar em sala de aula e seu rendimento escolar caiu.
A beleza também pode ser um problema. Ano passado, um menino de 11 anos de uma escola da Zona Norte teve de raspar a cabeça após receber diversas ameaças de um colega.
— Ele disse que colocaria fogo no meu cabelo se eu não cortasse — conta o guri, que mudou de escola.
Violência verbal ou física praticada entre colegas pode dar origem a ocorrências policiais. Não por bullying, crime que não é previsto pelas leis brasileiras. Segundo o titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), Marcio Schneider, as agressões mais comuns relacionadas a esse tipo de violência poderiam ser tipificadas como ameaça, constrangimento, vias de fato e lesão corporal. Mas o delegado esclarece que, até agora, nenhum inquérito por bullying foi aberto em Santa Maria.
O que é bullying?É um tipo de agressão repetitiva e sem motivo de uma pessoa ou de um grupo contra uma pessoa ou grupo mais fraco. As vítimas podem ser submetidas a constrangimentos, humilhações, apelidos jocosos, intimidações, difamações e até a violência física. Em consequência, veem comprometidas sua saúde emocional e suas relações. Crianças podem ter queda no rendimento escolar e até desistir de estudar. Já foram registrados casos de suicídios e homicídios que tiveram o bullying como situação de origem De onde vem a palavra?O termo vem da palavra inglesa bully, que significa valentão, brigão. Como verbo, significa ameaçar, amedrontar, oprimir. O professor da Universidade da Noruega Dan Olweus pesquisou tendências suicidas entre adolescentes e descobriu que a maioria tinha a ver com algum tipo de ameaça e passou a combater esse tipo de intimidação Onde ele ocorre?É um problema mundial, sendo encontrado em toda e qualquer escola, não estando restrito a nenhum tipo específico de instituição: primária ou secundária, pública ou privada, rural ou urbana. Também pode haver bullying em outros grupos sociais como universidades, locais de trabalho, vizinhanças e até mesmo em famílias Perfil de vítimas e agressores– No Brasil – Em levantamento feito em 2009 com 5.168 estudantes de 25 escolas das cinco regiões do país, 20,1%, dos alunos disseram ter sido vítimas de bullying. Desse universo, 12,5% são meninos e 7,6% são meninas. Dos autores, 12,5% são meninos e 8% são meninas
– 16,8% dos alunos disse ter sofrido bullying por meio da Internet, o cyberbullying
– No Estado – O programa Diga Não ao Bullying, da entidade Iniciativa por um Ambiente Escolar Justo e Solidário, ouviu 7.038 alunos de escolas do Estado. Desses, 80,34% afirmaram que a prática existe na escola. Em 72,4% dos casos, os agressores dão apelidos, “pegam no pé” e zombam das características físicas
– Apenas 2,8% dos casos ocorrem na InternetFonte: ONG Plan Brasil
Intimidação na rede
Segundo a ONG Plan, o bullying que mais cresce é o que ocorre na Internet. Acreditando estarem anônimos, muitas pessoas – adultos, adolescentes e crianças – criam páginas, invadem e-mails, mandam mensagens de texto via celular ou usam redes sociais para agredir e caluniar desafetos na rede.
Mas todo crime deixa rastros, e é possível descobrir os autores do cyberbullying. As vítimas têm o direito de prestar queixa e pedir sanções penais. Veja algumas formas de se defender:
– Salve e imprima as páginas dos sites
– Consiga testemunhas
– Dê queixa em delegacia
– Se o autor das ofensas for menor de 16 anos, os pais serão processados por injúria, calúnia e difamação
– Se o agressor virtual tiver entre 16 e 18 anos, responderá junto com os pais
– Se o autor for maior, assumirá a responsabilidade pelos crimesFonte: ONG Plan Brasil
Como a família pode ajudar
Pais de vítimas e agressores devem estar alertas
– Habitue seus filhos a contar histórias da vida escolar
– Converse com seus filhos sobre bullying, explique que esse tipo de tratamento é cruel e ensine-os como agir
– Fique atento a bruscas mudanças de comportamento. Uma criança extrovertida que se cala, passa a apresentar distúrbios alimentares, baixo rendimento escolar ou que adoece na hora de ir a escola pode estar sinalizando um problema oculto
– Ao descobrir as agressões, entre imediatamente em contato com a direção da escola e peça providências. Caso haja ameaça à integridade física da criança ou jovem, não hesite: procure a polícia e troque a vítima de escola. Se preciso, procure ajuda psicológica à vítima
– Os valentões também precisam de ajuda. Os pais devem trocar informações constantes com a escola. O guri que em casa é um anjo pode ser um terror no colégio.
Pergunte ao professor– A criança agressiva pode precisar de auxílio psicológicoFonte: Centro de Estudos do Bullying Escolar
A lei gaúcha
O Rio Grande do Sul é o primeiro Estado do país a ter uma lei antibullying. O projeto do deputado Adroaldo Loureiro (PDT) prevê a criação de grupos de treinamento de professores para diagnosticar e prevenir esse tipo de prática em todas as escolas gaúchas. O texto também prevê apoio psicólogico a vítimas e agressores.