Já falei algumas vezes aqui no blog da lastimável postura de muitos médicos em relação aos pacientes obesos, a situação é tão triste que todo mundo tem uma história para contar. Mas como tudo, existem sim exceções para nossa sorte, me deparei dia desses com um desabafo no facebook de uma futura médica, onde ela conta casos que presenciou e fala da sua experiência com a obesidade.
O desabafo é grandinho, mas vale a pena ler ele inteirinho. Nas palavras da Camila Borges temos mais um apelo aos médicos, é preciso aprender a respeitar os gordos.
“Eu sou OBESA, isso mesmo, obesa, IMC 38. Gorda, baleia, rolha de poço, ou como disse um médico hoje, a desgraça da humanidade, uma porra que só serve pra dar trabalho, devia nem existir esses merdinhas.
Minha obesidade começou na adolescência, 13/14 anos, um mix de menstruar, corticoide, comer demais e falta de controle total das minhas emoções, e algumas experiências traumáticas que não desejo a ninguém (lembrando que pessoas podem simplesmente ser gordas por que querem comer à vontade e não ser escrava de um padrão).Enfim, engordei. Passei dos 15 aos 17 com um sobrepeso, oscilando pra algo mais pesado e emagrecendo pra tentar me encaixar num padrão imposto pra todas as adolescentes. Me mudei do meu estado, vim morar sozinha no Amazonas e me afastei de todas as pessoas que naquela época me policiavam pra não engordar mais. Pré vestibular, entrei na faculdade que sempre sonhei, e sempre me subestimaram, medicina. Tive seis meses de tranquilidade onde consegui emagrecer cerca de 20kg, entre dietas radicais, medicamentos, exercícios e pressão. Antes de voltar á Manaus ouvi várias vezes: nossa, como ta linda, emagreceu né?! (Sim, por que na visão das pessoas ser gordo é igual a ser feio); nossa Camila, tem que manter ein; emagrecer é fácil, quero ver manter lá morando sozinha. Enfim, comecei a faculdade me sentindo ótima (por que você realmente acredita que agora tudo vai mudar, agora vc vai conseguir emagrecer e todos vão cair aos seus pés. Você não precisa mais se esconder), mantendo, forçosamente, uma imagem de auto confiança, de que eu não me importava com a opinião dos outros e etc. Durante a faculdade eu entrei num dos mundos mais estereotipados que eu conheci até hoje, o da medicina. Façam uma análise, quantas pessoas gordas estão nos corredores da faculdade? E quantas na formatura aparecem gordas? Eu sofri uma pressão como nunca pra emagrecer, tanto de pessoas que eu nem conhecia, quanto pela minha família, pelos meus amigos e por alguns professores, que mantinham o padrão: nossa, você tem o rosto tão lindo, se emagrecesse; você tem que emagrecer, olha o tanto de doença que você vai ter (sim, por que a saúde de gordo é preocupação de todo mundo) como que vai aguentar a faculdade, como vai arranjar alguém pra casar, como vai passar pelo internato, como vai entrar num vestido de formatura.
Até que eu não aguentei. Entrei em depressão, engordei mais de 40 kg durante a faculdade, não consegui ter nenhum relacionamento afetivo e me sentia a pessoa menos desejável no mundo. No quarto ano, voltei pra minha cidade e disse que não queria voltar mais pra manaus (pro papai), queria ter um tempo pra me fortalecer por que eu me odiava, e minha ansiedade tava me consumindo. Foi quando conheci pessoas, as que eu menos esperava, amigos do meu irmão mais novo, com seus 16/17 anos, que me amaram e me fizeram ver que tem um mundo muito maior que a aparência, e que eu não deveria me martirizar com isso. Voltei pra Manaus disposta a mudar, mudar mesmo, procurei uma psicóloga (que eu vou agradecer pra sempre) que me fez enxergar onde estavam o início de tudo e trabalhar pra resolver minha ansiedade, e não minha obesidade. Que isso não era o meu problema.
Antes de entrar no internato voltei pra casa por três meses, disposta a emagrecer pra aguentar a rotina, e melhorar meu joelho (um motivo real). Então comecei uma dieta descente, medicamento pra ansiedade, e exercícios de acordo com minhas possibilidades (principalmente dança que eu adoro); mas o principal foi que eu me cerquei de amor por todos os lados, li livros, me eduquei pra ser mais de mim, aprendi sobre feminismo e sobre o que eu era de verdade. Nesse meio tempo cultivei melhor minha autoconfiança, minha autoestima e meu amor próprio (o que me proporcionou várias novas relações). Hoje estou no fim do meu penúltimo módulo, talvez o módulo mais extenuante, cirúrgica, mais especificamente ortopedia, e hoje foi a primeira vez nos últimos 13 meses que eu chorei por ser gorda.
Mas dessa vez não foi por me sentir errada, me sentir feia ou sentir que ninguém gosta de mim; foi por constatar que estamos muito longe de sermos bons, ou pelo menos de algumas pessoas ter bom senso. Um médico, especialista, com no mínimo 15 anos de estudo (provando que dignidade e ignorância não se relacionam tanto com o grau de estudo) falou, depois de várias merdas, uma merda tão grande que talvez eu não consiga reproduzir.
“Gordo só da trabalho, esses merdas deviam morrer. Não é mesmo? Pior desgraça da humanidade. Só vem pra cá pra dar trabalho. Uma porra que só serve pra dar trabalho” naquele momento eu desabei, discretamente me sentei e segurei pra não chorar na frente dele.
Não foi pra mim, foi sobre um paciente que estava lá e era obeso mórbido. Mas foi como se uma faca entrasse e me dilacerasse por dentro.
Recentemente em outro setor, um cirurgião foi perguntando se ele tinha pedido tomografia pra um paciente de 140 kg, a resposta dele foi que não, por que ele atendia gente, é aquele hospital não era pra boi (antes de emagrecer eu pesava 139kg).
Todos esses comentários foram feitos por pessoas que deveriam estar cuidando de outras, solucionando uma dor, uma angústia; sobre obesos na frente de uma obesa. Mas esses profissionais não agem assim. São esses mesmos profissionais que atendem bandido e falam “tinha que ser preto”, “esses marginais tinham que morrer todos” entre outras barbaridades.
Por que isso? Pra que tentar diminuir as pessoas? Pra que tanta crueldade? Onde foi parar a ética e o bom senso de profissionais?(vou nem falar do pessoal).
Me senti covarde por não dizer nada. Portanto, a partir de hoje eu decidi que não vou mais aceitar esse tipo de intolerância. Vou lutar pelas causas que eu acredito, vou lutar pra que as crianças, adolescentes e adultos sejam felizes por ser o que eles são.
Esse textão, esse desabafo são pros meus colegas que irão se formar, é pros que já se formaram e estão trabalhando, cuidando de pessoas com essa mesma característica que eu (não vou falar problema por que obesidade não é pra ser problema – Se você acompanhar periodicamente seus exames e saber que ta tudo bem); Pensem bem o que vão dizer, a piada que vai fazer, como você vai dizer que ele precisa perder peso, ou os comentários que você fará se tiver fazendo um procedimento nele. Pensem que NINGUÉM merece ser tratado assim, nenhuma característica pessoal pode ser tida como ofensiva. Ninguém pode ser desmerecido por ser o que é. Pensem bem, pode ser seu pai, sua mãe, seus filhos, ou qualquer outra pessoa que você ame, a próxima a ouvir barbaridades tão comuns como essas. Pensem em pessoas que passam a vida inteira se diminuindo, ou se matam, ou não conseguem sair de uma depressão (outra coisa que é desmerecida por médicos e profissionais da saúde até hoje). Tentem ser mais humanos, mais éticos e mais bondosos. Nenhum paciente queria estar ali, todos estão em busca de algum tipo de consolo. Então tentem ter empatia e se colocar no lugar do outro. ( deixando claro, Não Estou fazendo apologia à obesidade, eu vou ser médica e sei das implicações clínicas que a obesidade trás, mas sei também que não devemos tentar ser o que não somos por padrões, por uma estética estereotipada, por um padrão imposto, vamos cuidar da nossa saúde com carinho, mas sem nóia de termos que nos encaixar.)“