Convidei a querida Letícia Assis, para um guest post contando sobre sua vivência como soropositiva, acredito que a experiência dela pode ser um alerta para muitas de nós.
Há pouco mais de um ano minha vida mudou. Como jornalista, não gosto de enrolar e talvez por isso guardei comigo a forma de resumir assuntos nas primeiras linhas. Em novembro de 2016 descobri portar o vírus do HIV.
Agora, com calma, posso contar como foi e as razões pelas quais há alguns meses resolvi compartilhar essa história.
Tenho 40 anos, sou comunicadora, com formação e carreira em jornalismo. Também sou cozinheira profissional, mantenho uma empresa de eventos e sou cosmetóloga natural, entre outras aventuras.
Tenho uma filha, sou casada há quase uma década e, de alma cigana, já vivi em muitas partes desse Brasil. Dei aulas, aprendi, dei cabeçadas e me permiti. Isso inclui a parte sexual. Porém – ironicamente ou não – apesar de ter sido uma mulher de muita atividade, sempre gostei de ter alguém, de me apaixonar, das delícias e agruras de uma vida a dois. Fiz muito sexo sim, de muitos os tipos, sabores, tons, geralmente precavida de tudo até por ter a lua em virgem. Simm, havia esquecido de mencionar que minha maior amante nessa vida sempre foi a intuição. Graças a ela, conheci mil formas de espiritualidade, da astrologia à umbanda, meu pé no chão, creio, definitivo.
Pois essa canceriana, com ascendente em peixes, lua em virgem, vênus em touro; filha de Iemanjá com Xangô; portadora do Ohikari Messiânico e iniciada na Escola de Mistérios se viu sem chão no dia 28 de novembro de 2016, após 20 dias de coma induzido graças a um quadro de pneumonia severa. Sem chão eu estava mesmo porque ainda não andava e foi na UTI que aquele médico lindo e atencioso me deu a notícia. Ele já tinha contado ao meu marido e à minha mãe. Resolveu ele mesmo me falar, longe de todos, sobre os primeiros indícios do que havia acontecido comigo.
Para minha surpresa, eu estava com esse vírus tão assustador há muito tempo. Meu último teste de sorologia tinha sido feito na gestação da minha filha, hoje com 12 anos. Depois disso, até fiz um teste num posto e nunca fui buscar. Sabe-se lá o porquê… E as razões que me fizeram chegar ao limite do meu corpo. Logo eu, que sempre preferi saber das coisas de cara, por mais doído que fosse, achei que não era importante.
Uma sombra pairava sobre mim. Eu não sabia bem a razão. Só sentia. Mas como nenhum médico desconfiou, nem em pequenas cirurgias, nem olhando meus exames, seguia vivendo. Ao mesmo tempo, mantinha meu namoro e depois meu casamento com o Tiago sem uso de proteção. Secretamente, meu medo maior era que viesse dele algum problema pela visão que ele mesmo tinha do mundo. E não veio. Somos o que se chama de casal sorodiscordante.
Não veio dele e de nenhum dos parceiros de uma única noite que tive. Veio do namorado mais careta e mais retrógrado que tive. Um cara cheio de fantasias, sem coragem pra admitir seu verdadeiro eu, sociopata, agressivo, cheio de “poréns”, abusivo e que até minhas roupas queria controlar. Ou seja, alguém pelo qual até hoje não sei o porquê de ter me interessado. Talvez porque ele mentisse melhor do que eu. E, na época, eu era boa na arte de enganar as pessoas. Me senti desafiada a me relacionar com aquele mito da falsidade. Ou a sombra dele ofuscava a minha. Sei lá. Gostei muito dele. Só caí fora porque vi que estava indo pra um caminho que não me agradava. Mentira. Tenho certeza que caí fora graças aos meus guias e também ao Tiago – que de amigo passou a ser meu amante e depois namorado. Era um egum sem luz contra um exu tinhoso. O Exu sempre vence!
Ativismo e o Sim sou Diva
Há algum tempo, eu vinha participando de eventos e até promovendo alguns. Cheguei a criar um coletivo feminino, chamado Sim sou Diva. Estivemos em toda mídia possível local e nacional nos dois anos em que existimos. E num desses eventos (o Divas do Cinema Plus), eu organizei tudo e simplesmente não pude ir. Minha respiração era tão frágil, que eu mal cruzava uma rua sem chorar de dor no peito. O pulmão estava se entregando…
Foram nem dois dias para que eu fosse internada e logo estava entubada, inconsciente, na UTI. Mesmo assim, a descoberta do HIV só aconteceu por uma enfermeira que insistiu para que o médico examinasse minha boca, lotada de cândida, há meses. Eu nunca desconfiei que aquilo fosse indício de HIV. Pra mim era apenas baixa imunidade.
Teste certeiro e carga viral acima de 55 mil cópias. E daí o resto eu já falei.
Então, por muito tempo me escondi, com medo da rejeição. Contei para poucos amigos e alguns familiares. Aos poucos, fui tomando coragem, lendo depoimentos, voltando a trabalhar. Percebi que minha reclusão era a negação da minha luz e que eu precisava sim me expor. Eu lia pessoas falando de coisas acerca do vírus que eram risco iminente; aquilo me incomodava. Foi então que gravei o primeiro vídeo. Fiz umas 10 versões até que um ficou simples e natural:
Altos e baixos
Um dos tabus do HIV é pouco ou nada se falar a respeito do humor severamente afetado pelas medicações. Há quem consiga manter uma constância, mas no geral – e no privado – quase todo mundo relate instabilidade emocional. Num dia estamos bastante confiantes e no outro já planejamos testamento. Isso não tem tanto a ver com personalidade e sim com as reações químicas que o coquetel promove no cérebro.
Para quem não sabe, qualquer medicação antirretroviral penetra as barreiras neurocerebrais. Os efeitos variam muito: vão de alucinações à insônia leve, passando por euforia e tristeza, à praticamente nada. Cada organismo reage de uma forma e sabemos que pesquisas sobre atividade cerebral ainda são bastante inconclusivas seja qual for a razão.
Então, o portador de HIV está sujeito a variações de humor bem acima da média. Se tens algum amigo, parente, colega de trabalho ou companheiro em tratamento, um conselho: seja tolerante. Não, você não sabe o que é estar na pele dele, na nossa pele. E não é por piedade; não precisamos disso. É por exercício de humanidade, de compreensão.
Aliás, falando em piedade, é bem chato ouvir frases do tipo das pessoas. Até compreendo que pouco se fala sobre o assunto, pouco se conhece sobre tratamentos e reações e o estereótipo da morte rondando ainda é muito presente na sociedade. Mas ACREDITE: não precisa sentir pena. Ofereça seu apoio, seu abraço, seu ombro e principalmente o seu sorriso. A alegria cura, acredito muito nisso.
As dificuldades
Ouvi de várias pessoas quando contei que elas tinham um primo, um amigo go, blablabla, e que era só tomar o remédio e teria uma vida normal.
Não. NÃO! O coquetel é o primeiro passo, porém o caminho tem tanta pedra, gente, que não cabe em definições simplistas. Acredito que existam casos bem simples sim, mas não é o meu e não é o de muita gente.
Primeiro que há vírus mais resistentes (prazer!) do que outros. Segundo que as relações psicológicas, de trabalho, de firmeza da mente ou espiritualidade, de alimentação, DE OPORTUNIDADES DE TRATAMENTO PARALELO E DE APOIO são muito diferentes. Eu me trato pelo SUS. Não tenho queixas, exceto pela demora no resultado dos exames e das genotipias. Meu médico, Dr. Juliano, é excelente, atencioso e sempre busca informações adicionais quando precisa. A equipe DST do posto de São José e de Biguaçu sempre foi solícita dentro do que o serviço público e a situação em que o país se encontra permite.
Por um tempo, tive plano de saúde. Pude fazer check up cardiológico, endocrinológico, nutricional, ginecológico e pulmonar. Santa Catarina tem uma rede de medicamentos bem razoável e poucas vezes tive que peregrinar por medicação paralela. A do HIV nunca faltou.
Mas sei que há regiões do país onde falta até o coquetel. Pra marcar consulta é um inferno e por aí vai. Então, tenho consciência que sou privilegiada.
Outro privilégio é viver em um sítio, respirando ar puro, comendo coisas orgânicas. Isso faz muita diferença. Enfim, não dá pra simplificar e por todo mundo na mesma sacola.
Mesmo assim estou numa situação crítica: carga viral alta, CD4 baixíssimo, CD8 razoável e uma possível resistência medicamentosa.
Daí, pessoas, ouvir de quem você ama que te falta gratidão, que te falta perdão, que teu corpo está assim por intransigência, é bem desconfortável, pra não dizer cruel. Veja bem: pode até ser que seja verdade, mas nesse momento não quer ler nem ouvir isso. Se você não tem um abraço ou um sorriso pra me dar, nem diga nada. Não é momento de me julgar nem de apontar meus erros, até porque quem nunca errou? Só um parênteses.
Melhor então me deletar como muita gente fez ao ver o meu primeiro vídeo. É mais honesto e que cada um lide com sua forma de ver a vida.
Estereótipos
Por fim, para que esse texto não vire um tratado e agradecendo o precioso convite da Kalli, a quem admiro faz tempo, uma das razões pelas quais resolvi me expor é por ler comentários em grupos e posts, não necessariamente ligados aos HIV, porém bastante preocupantes.
Um deles diz respeito à orientação sexual. A AIDS se firmou como doença de gay, mas há bastante tempo se mostrou poderosa em qualquer âmbito socionormativo. O número de mulheres infectadas que são casadas, heterossexuais e com apenas um parceiro na vida é assustador.
Então, não confie. Ame sim, mas ame mais a você. Até porque milhares de pessoas sequer sabem que portam o vírus e as mulheres são mais vulneráveis por questões fisiológicas e pelo poder do sêmen; poder de contágio que os líquidos vaginais possuem em bem menor proporção.
O outro tem relação com biotipo. Sou uma mulher gorda. Apesar de ter emagrecido, continuo gorda e provavelmente morrerei gorda. Logo, ser gordo não te protege de nada nem denuncia perfil saudável pra DST. Gordos transam como outro tipo de pessoa qualquer. É incoerente, inocente e negligente que você não se proteja porque seu parceiro ou parceira é gordo, apenas pelo estereótipo de que aidético é magro. Estamos em 2018, gente! E o HIV evoluiu mais do que muita gente…
É isso. Teria mais a dizer, mas aos poucos vou compartilhando nos vídeos e, quiçá, na página do Sim sou Diva www.simsoudiva.com.br e www.facebook.com/soudivaplus, a qual pretendo alimentar melhor em breve.
Por enquanto, sigo com minhas incertezas, com muita fé e com meus sabonetes, cosméticos e quitutes, e às vezes palavras e conjecturas.