É muito comum na televisão atualizar antigos textos, fazer uma nova versão. Pra mim isso é falta de criatividade, mesmo que a base de todas as histórias seja sempre a mesma, a única coisa que muda é a maneira de contar e se essa maneira se repete qual a graça?
Além do perigo de cair na mesmice tem outro lado, os tempos mudaram e as minorias hoje não vivem mais as margens da sociedade hoje lutam pelos seus direitos e sabem se posicionar, por isso usar textos antigos pode significar mexer em vespeiros.
No Brasil ainda não conhecemos todos os nossos direitos, então quando alguém fala alguma coisa ofensiva, logo emenda: Mas é brincadeira!
Isso tem sido escudo contra as maiores barbaridades que alguém é capaz de dizer. E no momento que estamos um grupo ficou totalmente desprotegido, os gordos. Poucos sabem que essa rejeição social que sofrem se chama gordofobia.
As pessoas não acham que insultar um gordo seja uma coisa séria, mas a base da gordofobia é a mesma de outros preconceitos, a pura ignorância.
E eu já me considero uma vidente social. Às vezes erro, às vezes acerto.
Mas vi o comercial de uma novela que nem começou e eu já posso dizer que não gostei.
A novela foi escrita e produzida em 1976, Saramandaia, por Dias Gomes. Era o auge da ditadura e ele sempre foi um escritor politizado, então resolveu fazer um texto para experimentar o realismo fantástico na televisão. Isso funcionaria e funcionou de duas maneiras, uma nova linguagem foi experimentada e permitia driblar a censura dos militares, eles não percebiam as denúncias ao sistema nas entrelinhas.
E agora a Globo resolveu fazer o mesmo texto, uma versão atualizada. Já se passaram quase quarenta anos, mas agora existem recursos técnicos para brincar com os personagens, coisa que na época complicou demais a vida da produção, porque a maioria dos personagens tinha alguma característica, um era lobisomem, outra provocava incêndios apenas tocando as coisas e um soltava formigas pelo nariz.
E no meio de todos esses personagens, existia a Dona Redonda, uma senhora obesa que não conseguia parar de comer, passa a novela inteira comendo, até que explode e morre.
Virei a internet para ver se eu encontrava a razão política desse personagem, já que Dias Gomes era conhecido por isso, por usar outros elementos para denunciar a ditadura. E não achei nada, então conclui que esse personagem é assim. Dias Gomes como muitos deve ter escutado isso na infância, eu também escutei -Fulano come tanto que não sei como não explode!
E talvez ele como autor quis brincar com isso. Há quarenta anos os números de obesidade não eram tão altos e não se sabia o que se sabe hoje. A novela nem começou e eu já não gostei.
Comer compulsivamente como o personagem faz é uma doença, um distúrbio,uma compulsão, é uma coisa séria, não é brincadeira de novela. O personagem aparece indo na feira e comprando tudo e as pessoas se assustam. Imagino que vão respeitar o texto original e o personagem vai passar a novela inteira comendo como se não existisse amanhã.
E assim outra geração de crianças vai crescer com essa idéia, de que gordos são descontrolados, comem como malucos e no fim explodem. E crianças brincam com elementos de novelas, com certeza depois de assistir a novela vão chegar à escolinha e dizer ao amiguinho gordo- Você vai explodir de tanto comer, como na novela!
Compulsão por comida tem tratamento, é uma doença que envolve um sofrimento enorme. Quem tem problema com as drogas, pode tentar largar e não voltar ao vício, mas a compulsão por comida é muito pior porque a pessoa não pode parar de comer, senão ela morre, então cada vez que ela se alimenta o cérebro acorda e fica difícil controlar.
E isso vai virar piada em novela, uma doença como essa que envolve tanta dor.
E qual a solução para novelas que insistem em mostrar o gordo como uma pessoa fraca, louca por doces, guiado pela fome e capaz de levar tudo que encontra em uma feira?
É um caminho longo, mas eu acredito que a única solução é a mesma que os negros encontraram, mostrando que a televisão é racista. Graças aos movimentos pelos seus direitos, os negros hoje não são mais retratados como antes, apenas em novelas de época se permite mostrar um negro como escravo, porque corresponde a um fato histórico, de século passado.
E os gordos precisam fazer isso, se impor para acabar com essa imagem errônea que a televisão constrói sobre o assunto. Os gays também sofrem a mesma coisa, são retratados de maneira caricata, apenas agora uma novela começou a mudar isso, mas em programas cômicos eles ainda são ridicularizados, como os gordos são.
Obesidade não é gracinha de novela e ver alguém explodir em consequência de uma doença não é piada. Vão falar para não levar tão a sério, que é só brincadeira de novela a gorda explodir. Tá bom.
Mas se o objetivo da novela é fomentar mais ainda o ódio aos gordos e garantir a todos que gordos são mesmo descontrolados, parece que vai dar certo.
Ah, mas de repente eles mudaram o texto e vão mostrar de uma maneira positiva, se for assim, eu volto aqui e mudo meu texto e ainda me desculpo. Mas eu sou macaca velha, já vi esse filme antes e sinto na pele todos os dias o ódio que as pessoas têm pelos gordos. Só a estreia da novela vai dizer se o mundo avançou ou não.
Iara De DuPont
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